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setembro 30, 2006

Charrinhos e carapaus

Desde há muitos anos, temos uma discussão conjugal (recomendo que não as tenham para além disto!) sobre chicharros açorianos – os “charrinhos” – e carapaus continentais. Eu teimo que são coisa bem diferente, a minha mulher acha que é saudosismo de ilhéu romântico. Agora, nas nossas férias em S. Miguel, ela rendeu-se à evidência e diz que se vai sempre recordar dos “charrinhos” quando aqui comer carapaus.

Ficou-me uma dúvida: serão mesmo peixes diferentes ou é apenas uma questão de mar, temperatura, plâncton? A resposta de um especialista foi a seguinte:

No continente ocorrem duas espécies, o Trachurus trachurus e o Trachurus picturatus, onde lhes são dados os nomes de "carapau branco" (ao Trachurus trachurus) e de "caparau negrão" ou "carapau do alto" (ao Trachurus picturatus). O T. trachurus é o mais comum aí.
Aqui nos Açores só ocorre o Trachurus picturatus a que chamamos chicharro e variantes.

Conclusão: se quiserem saber o que é mesmo um bom “charrinho”, vão aos Açores e não percam. Ainda por cima, há coisas diferentes de cá, na confecção: envolvimento em farinha de milho e não de trigo, na fritura; molho de vilão ou molho verde (vejam as receitas no meu livro “O gosto de bem comer”); acompanhamento com batatas barradas com malagueta. Cá, sugiro que perguntem primeiro ao cozinheiro se é Trachurus picturatus. Estou certo de que ele deve saber...

setembro 28, 2006

Apresentação

Lembram-se do Professorices? Chegou a estar nos top 50. Exterminei-o, porque desviava atenções do meu sítio onde trato de coisas sérias. Distribui os temas do Professorices e instalei no sítio três páginas tipo blogue. Os Apontamentos sobre a educação superior lá ficarão. Gerindo o calendário, tinha outras escritas de fim de semana. Ao sábado, o Bloco de notas, ao domingo o Gosto de bem comer.

Isto só era possível por o meu sítio ser muito largo, diria mesmo que uma charunfada. É o problema de os fornecedores de alojamento só nos darem um domínio. Agora, vou separar mais claramente o sub-sítio universitário do pessoal. Com isto, vou pela recomendação de um dos nossos principais bloguistas, que me desafiou a voltar à comunidade dos blogues.

Com chamada no meu sítio, para os que entretanto se habituaram, criei dois blogues. O Bloco de notas, em princípio mantendo o calendário de sábado, porque não quero voltar a ser escravo de um blogue, vai ser para escrever o que me for saindo. Só o que me parecer importante sobre a sociedade, a política, as grandes questões do nosso viver de hoje. Filosofices?

O outro é O gosto de bem comer. É um blogue de um amador que se preza de ser bom gastrónomo, cozinheiro inventivo e com um livro publicado, com esse título.

Em ambos os blogues inseri uma entrada igual à última do meu sítio. Durante um período de transição, vou escrever duplamente e também, com tempo, passando para os blogues os textos anteriores. Leiam abaixo, para exemplo.

setembro 24, 2006

Férias em S. Miguel (VII)

Tradições culinárias esquecidas

Nas férias em S. Miguel, fui várias vezes a um restaurante de que gosto bastante, com base na cozinha regional. É pena que não possa identificar o restaurante, para não lhe causar problemas. Um dia, veio o chefe dizer-me: “hoje o senhor não escolhe da ementa. É jantar de família, foi a minha mulher que o preparou em casa, em sua honra”. Como era restaurante, combinámos o preço simbólico de 10 euros, fora as bebidas.

Tudo isto na sequência de muitas conversas anteriores, ele a dar-me razão, que a mulher sabia fazer coisas de que eu me queixava de faltarem na ementa, mas que a gente local já esqueceu e que os turistas desprezam – por exemplo, polvo, fava de taberna, torresmos de molho de fígado. Não é que eu não saiba e possa fazer e muito bem, mas comido lá é outra coisa, exaltam-se as papilas de infância com um brilho de olho nostálgico e lacrimejante. Mas negócio é negócio e não se pode exigir que um restaurador seja mecenas da cozinha regional, com perda própria.

Conversa de negócios à parte, o bichinho do meu gosto de bem comer de infância lá lhe caiu e daí o tal jantar de família, coisa que nunca esquecerei. Primeiro, umas excelentes lapas cruas. Com o defeso da captura de lapas, só se comem em S. Miguel lapas grelhadas, congeladas, vindas da Madeira. Mas ai, a lapa crua (quem sabe arranja, como se vê), rija, sabor extravagante, mais forte e rústico do que a também excelente delicadeza da ostra, misturado com sabor a mar! Pena, mas bem bom, que a minha mulher se horrorize com comer bicho cru. Mais ficou para mim.

Depois, que delícia, umas favas há tantos anos desaparecidas das ementas micaelenses. É o que ainda resta neste pais, mas com diferenças marcantes, da secular fava rica, feita com fava seca. A receita vem no meu livro. Senhora cozinheira cujo nome lamento não ter fixado: aqui fica registado o meu sincero agradecimento. Para a minha próxima ida a S. Miguel, não quero ementa no seu restaurante (aliás, uma boa ementa), só mais destes “jantares de família”, mas pagos com justiça.

setembro 17, 2006

Queijo velho

Não sabem o que isto é, coisa magnífica, mas só para quem gosta de queijos de sabor forte, não para quem só conhece o ovelha amanteigado, que não vou dizer que não é bom. Comia queijo velho na minha meninice, esqueci-o durante muitos anos até que, no jantar magnífico com que uns primos queridos me receberam nestas férias, mo serviram. Que saudades! Já agora, que saudades também de um grande queijo micaelense extinto, o Água Retorta. Em contrapartida, muito maior venda hoje, em S. Miguel, do excelente queijo do Pico.

Previno, o queijo velho é difícil, de sabor muito forte, para alguns demasiadamente agreste. É essencialmente um queijo tipo S. Jorge, mas com nove meses (!) de cura – e escrevo isto enquanto vou trincando uma fatia, com o meu copo de vinho branco seco de antes do jantar. Mas cuidado, é preciso saber comer queijo. Dentadas muito pequenas, envolver bem na boca até amaciar, tomar bem o sabor e só depois engolir. Comer queijo é toda uma arte! Só tem comparação em requinte à arte de comer marisco, outro saber comer (já viram pessoas a comer até o simples camarão, um atrás do outro como se fossem batatas fritas de pacote?).

A surpresa vem-me do fornecedor. É um supermercado, aqui à porta, que normalmente desprezo pela má qualidade geral, o Lidl. Mas foi onde a minha mulher descobriu esta preciosidade. O rótulo, para quem o queira procurar, diz só “São Miguel” e, em letras pequenas, “Queijo velho”.

Mas volto a dizer, isto é só para quem gosta mesmo de queijo, para quem sabe que o seu lugar não é no “couvert” a acompanhar presunto, mas entre o prato e a sobremesa, com um bom Porto vintage, para quem sabe que queijo não é só de ovelha e muito menos fresco. Os açorianos sabem o que é queijo. Vejam o muito que sobre isto escrevi no meu livro.

setembro 12, 2006

Vinho dos Biscoitos

O vinho dos Biscoitos, de que já aqui falei, é um ícone da velha história vinícola dos Açores, quase destruída no século XIX pela praga da filoxera. Digo “quase” e muito bem, porque ficaram alguns “irredutíveis gauleses”. Por toda a parte, as vinhas foram arrancadas e substituídas pela horrorosa vinha Isabel, ou de cheiro. No entanto, mantiveram-se uns nichos das velhas castas. Destas, a mais típica é a verdelho. Não sendo perito, creio que também se cultivava, como na Madeira, a terantês. Não sei se alguma vez se cultivaram nos Açores as outras castas tradicionais da Madeira, boal, sercial e malvasia. Creio que não.

O vinho açoriano mais apreciado, internacionalmente, era o generoso, dos Biscoitos e do Pico. Em tempos passados, era meio doce, depois começou a fazer-se seco e meio seco, para aperitivo. Em qualquer dos casos, muito bom, hoje, depois de tempos de má técnica. Os Biscoitos merecem respeito: são região demarcada e têm confraria.

Começa também a florescer a produção de brancos de mesa, na Graciosa e no Pico. Já há um branco de mesa dos Biscoitos, da casa Brum, o Donatário, exclusivamente verdelho, um desafio a abrir-me os sabores, a mim que sou um amante dos vinhos monocasta, os que permitem os maiores desafios de escolha ao apreciador. Infelizmente, nestas minhas férias recentes em S. Miguel, não dei por ele. Quando é que vou encontrar à venda um Donatário?

O vinho dos Biscoitos é caso especial, porque hoje é magnífica obra familiar, dos Bruns, herdeiros do velho senhor terceirense Chico Maria, que dá hoje nome a alguns dos vinhos. O seu museu do vinho, na Terceira, é ponto turístico obrigatório. Infelizmente, será ponto banal de passagem para muitos turistas, mas não para aqueles que percebem toda a cultura familiar, o espírito açoriano e a quem o Luís e a família dedicam esmeros de hospitalidade terceirense.

Estou a devanear e a esquecer-me do essencial que foi, finalmente, encontrar um sítio da casa Brum. Está lá tudo sobre o vinho dos Biscoitos. Só falta uma coisa. Onde comprar em Lisboa tão extraordinário vinho? Luís Brum vai-me mandando com amizade algumas garrafas, mas eu bem queria divulgar o seu vinho entre os meus amigos de cá.

setembro 10, 2006

Férias em S. Miguel (VI)

Que restaurantes, e para que turistas?

Nas notas que tenho escrito sobre cozinha tradicional açoriana, tenho-me esquecido de delimitar os públicos, coisa muito importante. Como micaelense à distância, ponho-me na situação do visitante que quer encontrar, ou reencontrar, no meu caso, os sabores identificadores da velha cozinha. Mas os micaelenses residentes também têm direito a bons restaurantes, que sirvam mais do que eles podem comer em casa.

Isto coloca problemas práticos aos empresários de restauração. Restaurante de genuína cozinha micaelense de alta qualidade? Talvez seja para fechar fora da época turística. Além disto, tem de atender a públicos diferentes. O turista português continental está bem preparado para o estilo muito particular da cozinha tradicional micaelense, mas duvido que o esteja o grande turista micaelense de hoje, o escandinavo, tanto por gosto como por poder de compra (sim, não estranhem, vão lá ver de que nível económico são). Mesmo um turista apreciador não aguente uma semana só a comer cozinha regional e quer ter oferta variada de bons restaurantes convencionais.

Mas há que pensar que os gastrónomos micaelenses não podem ficar subordinados aos turistas. Isto é questão complicada. Devem ter bons restaurantes extra-turismo, mas não os devem sugerir aos turistas como cozinha regional. Nestes últimos tempos, tive duas experiências tristemente exemplares. Primeiro, um restaurante de que aqui falei, que pretende ser de boa cozinha de inspiração micaelense, mas sem saber. Depois, o que está com fama de ser o melhor restaurante de S. Miguel.

É o tal paradoxo. Acho muito bem que um micaelense lá vá, para comer “bem” (no sentido banal mas enganador de fora de casa), mas não o recomende a um visitante, que, de bons restaurantes, tem experiência lisboeta a dispensar a micaelense. Tudo lá é fraco e não especialmente recomendável, desde a comida ao serviço. Pormenor anedótico de quando lá fui: ao fim de tempos de encerramento para obras, os disjuntores saltavam de minuto a minuto e a solução foi desligar o ar condicionado, para grande sudação dos convivas, em fim de tarde muito acalorada.

Dito isto, é verdade que talvez sirvam algumas coisas bem feitas, não açorianas, agradáveis para os locais, com destaque para a cozinha alentejana. Não sei, porque não provei. Desgostoso com toda a ementa, acabei por pedir um bife à micaelense. Que pena não ter ido outra vez ao Mandarina, teria comido um bife bem melhor.

Nota - curiosamente, ao contrário do que se passa por quase todo o país, vale a pena comer nos restaurantes de alguns dos hotéis de Ponta Delgada.

setembro 03, 2006

Férias em S. Miguel (V)

O cozido das Furnas

Hoje é raro o turista que não vá às Furnas e que não coma o cozido nas caldeiras. É um ícone merecido. Não é coisa muito antiga, data dos anos 30. Na época, era bem complicado: preparar de madrugada a panela, sem água, ir às Furnas colocá-la, bem fechada e dentro de um saco de serapilheira, numa cova aberta de propósito, voltar seis horas depois para a almoçarada, num tempo em que os quarenta quilómetros da cidade às Furnas eram um tormento de má estrada. Hoje, são os restaurantes que tratam disto, com destaque para o Miroma. E já há, junto às caldeiras da lagoa, na zona de terra bem quente, poços construídos para o efeito.

Este prato inesquecível tem alguma coisa de mito, o do sabor vulcânico. Bem bom que não tem. Já imaginaram o que é comer alguma coisa com sabor a enxofre, como são ovos podres? O segredo da excelência deste cozido está só em duas coisas. Primeiro, a qualidade da carne e dos enchidos, com o sabor inconfundível da linguiça e da morcela de S. Miguel. Depois, a cozedura sem água, ao vapor. É por isto que o faço muito bem em casa, embora com protestos da minha mulher que acha que não vale a pena o preço das longas horas de cozedura. Experimentem, principalmente se um amigo vos trouxer morcela e linguiça de S. Miguel

É claro que não apresentava uma receita tão fora do vulgar sem a ter experimentado e garanto que funciona, se seguir bem as indicações. Julgo que o ponto critico é a temperatura do forno. Hoje, os fornos eléctricos têm regulação de temperatura, mas os de gás muitas vezes não têm. Regule o gás para temperatura média, de forma a que o forno não fique muito quente, mas esteja sempre com muito vapor. Se usa óculos, verá isto facilmente ao abrir a porta! Podem perguntar-me se vale a pena todo este trabalho e o consumo de energia durante tantas horas para um simples cozido. Como sou um adepto incondicional do cozido (isso que se chama de português, mas que é provavelmente a mais antiga culinária europeia – cozido, olla podrida, pot-au-feu, etc.), acho que nunca há um “simples” cozido e que vale a pena melhorá-lo. Para meu gosto, a concentração de sabores deste cozido é memorável, se os produtos forem de boa qualidade.

Cozido das Furnas feito em casa

Para 6 pessoas. Colocar numa panela, com um pequeno fundo de água com um pouco de malagueta (cá, pimenta da Caiena), por ordem (pormenor importante!) 500 g de carne de vaca de cozer, 500 g de perna de porco, 250 g de toucinho, 6 batatas, 4 batatas doces médias (essencial para dar o estilo micaelense!), duas cenouras, meio repolho. Sobre isto, meio frango, 2 chouriços, 2 morcelas. com couve, em duas camadas de folhas inteiras, forra-se toda a panela, cobrindo bem os ingredientes. Temperar com sal e pimenta preta, entre cada camada.

Tapar e cozer no forno em banho-maria a 150º, durante várias horas ou com um pequeno tacho com água a ferver, que se vai acrescentando se necessário. Ir vigiando o banho-maria para ter sempre água e o forno estar com bastante vapor. Depende muito do forno, mas há que contar com cerca de 6-7 horas. No fim, a couve que cobre o cozido deve estar muito seca e tostada e rejeita-se. O cozido deve ficar muito tenro e com um reduzido fundo de caldo, que destila das carnes. Com parte deste caldo coado – cuidado, que é muito forte – e mais água (no total, 2 vezes a quantidade de arroz), cozer arroz carolino para acompanhar o cozido.

Como se vê, este cozido é menos variado em ingredientes do que algumas variantes regionais continentais. É assim o cozido açoriano. Recentemente, alguns restaurantes das Furnas estão a alargar a sua composição (chispe, entremeada, etc.), contra a tradição, mas não vejo grande mal nisso, porque a cozinha está sempre em evolução. Para os que, de acordo com os variados hábitos regionais continentais, o quiserem variar, deixo uns palpites. Creio que enchidos muito moles, como o chouriço de sangue (que entra também no cozido tradicional açoriano) ou a farinheira, se vão desfazer por completo ao fim desta cozedura. Também me parece que grão ou feijão ficarão em papa. E, embora não seja de tradição, acho que o inhame lhe dará um tom regional genuíno.