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novembro 12, 2006

O respeito pelos autores

Há dias, manifestei a minha opinião muito liberal sobre as modificações legítimas de pratos de cozinha tradicional. Paradoxalmente, tenho por regra de respeito pelos autores nunca modificar as receitas de autoria consagrada. Isto está em contradição com o que digo aos meus leitores de O Gosto de Bem Comer, qualquer coisa como isto: "aprecio a ideia de modificarem as minhas receitas segundo os vossos talentos de imaginação culinária, desde que não desvirtuam o essencial". De receitas genuínas, vou dar dois exemplos bem conhecidos. Reparem que, propositadamente, não vou dar a lista de medidas dos ingredientes. Nessa altura, não era hábito inclui-las nas receitas. Fica o desafio aos leitores. Se algum não se quiser arriscar, que mas peça.

Bacalhau à Gomes de Sá

Gomes de Sá, que viveu no Porto no fim do século XIX, comerciante de bacalhau, deixou-nos uma magnífica receita, uma das minhas preferidas, recolhida por Maria de Lourdes Modesto, tal como a transcrevo.
Demolha-se o bacalhau, coloca-se num tacho e escalda-se com água a ferver. Tapa-se e abafa-se o recipiente com um cobertor e deixa-se ficar assim durante 20 minutos. Depos escorre-se o bacalhau, retiram-se-lhe as peles e as espinhas e desfaz-se em lascas. Põem-se estas num recipiente fundo, cobrem-se com leite bem quente e deixam-se ficar de infusão durante 1:30 a 3 horas. Entretanto, cortam-se as cebolas e o dente de alho às rodelas e levam-se a alourar ligeiramente com um pouco de azeite. Juntam-se as batatas, que se cozeram com a pele, se pelaram e cortaram às rodelas. 
Junta-se ainda o bacalhau escorrido. Mexe-se tudo ligeiramente, mas sem deixar refogar. Tempera-se com sal e pimenta. Deita-se imediatamente num tabuleiro de barro e leva-se a forno bem quente durante 10 minutos. Serve-se no prato em que foi ao forno, polvilhado com salsa picada e enfeitado com rodelas de ovo cozido e azeitonas pretas.
Bacalhau à Conde da Guarda

O nome engana e nunca consegui apurar a sua origem. Quem era o conde Guarda e o que tinha a ver com esta receita? De facto, é uma receita original de mestre João Ribeiro, do Hotel Aviz, a quem talvez devamos tanto a Fundação Gulbenkian como a Azeredo Perdigão. Presto anualmente uma homenagem ao mestre. Durante o ano, vou improvisando muito sobre bacalhau, mas já é tradição que o de jantar de Natal seja à moda do Conde da Guarda e seguindo fielmente a receita, a dar entrada ao meu magnífico capão recheado, receita de família. Só falta, às saúdes de champanhe, lembrar mestre João Ribeiro. Eu até daria uns toques pessoais de modificação (já o fiz, em outras ocasiões experimentais), mas curvo-me reverencialmente perante o mestre.

A receita foi registada pelo seu amigo Manuel Ferreira, tal como contam José Labaredas e José Quitério no seu imperdível "O Livro de Mestre João Ribeiro" (Assírio e Alvim, 1996, ISBN 972-37-0406-4).
Coze-se o bacalhau e as batatas e escorrem-se, passando estas pelo peneiro. Escolhe-se o bacalhau de peles e espinhas e pisa-se num almofariz juntamente com os alhos. Retira-se este preparo do almofariz e deita-se numa caçarola. Leva-se ao lume, juntam-se-lhe a manteiga e a batata e liga-se bem. Adicionam-se-lhe as natas, a pouco e pouco, mexendo sempre com colher de pau até que a massa esteja bem lisa.
Tempera-se com sal, pimenta e noz-moscada. Unta-se com manteiga um prato de ir ao forno, deita-se-lhe o conjunto dentro, alisa-se e polvilha-se com o queijo. Salpica-se com manteiga derretida e leva-se ao forno a corar.
Devia ainda escrever sobre outras receitas históricas. Uma é a das amêijoas à Bulhão Pato, coisa tão brilhantemente singela. Nunca encontrei um escrito garantido com a sua receita genuína e, por isto, vou fazendo a minha, tal como a apurei. Outra é a das lapas com molho Afonso, coisa açoriana excelente, o único prato português que tira todo o partido das algas marinhas. Quem terá sido esse Afonso?

Finalmente, coisa que nunca aldrabo, a melhor receita portuguesa, a perdiz do convento de Alcântara, que difere de tudo o que foi dito antes por ser de autor anónimo. Mas não aldrabar custa os olhos da cara, em foie gras, trufas e Porto de alta qualidade, afora só poder ser feita por amigos de caçadores. Um dia destes, que as saudades já se fazem sentir, vou ter de abrir os cordões à bolsa.

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