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outubro 25, 2006

O cozido à portuguesa

Se há prato que justifique a obediência a regras básicas de cozinha, é o cozido, sinfonia que tem de ser tratada com todas as regras da harmonia e orquestração. É um orgulho nacional, o único prato que tem honras de adjectivação à portuguesa. Bazófia nossa, é a mais antiga cozinha medieval, por toda a parte, com restos hoje, por exemplo, no "pot au feu" francês ou na "olla podrida" espanhola. O primeiro segredo toda a gente o conhece, a melhor qualidade de todos os ingredientes. Já o outro, igualmente importante, é mais descurado, a boa técnica.

Primeiro, que carne de vaca? A melhor sugestão ao amador é que escolha um bom talhante e lhe peça conselho. Se se quiser aventurar como conhecedor, compre chã de fora e ganso redondo, eventualmente pá e aba, mas não fica a mesma coisa. Se o cozido for para poucas pessoas, aconselharia só uma carne, o ganso redondo. Eu uso também cachaço, que enriquece o caldo, mas não o sirvo no cozido. E, se quiserem ir pelo cozido de Espírito Santo açoriano (a função), que tal fígado e sangue cozidos?

Coisa difícil, a escolha dos legumes e hortaliças. Obrigatórias as batatas e as cenouras, mas a escolha do resto depende da estação em que estão no máximo: nabo, couve, tronchuda, lombarda, abóbora, grelos. Indispensáveis para mim, açoriano, são a batata doce e o repolho ilhéu (não tem nada a ver com o de cá).

E os produtos da matança? Obrigatoriamente, uma mistura equilibrada de enchidos de carne e de sangue: chouriço, salpicão, linguiça, até mesmo presunto, sem courato; morcela, chouriço mouro de sangue. A farinheira também é de regra.

Pôr na panela tudo a trouxe-mouxe, é o que muita gente faz. Nas sete receitas de variantes regionais de cozido que Maria de Lurdes Modesto inclui no seu livro "Cozinha tradicional portuguesa" (indispensável!) todos os ingredientes são cozidos na mesma panela. É a tradição, não nego, mas, para mim, um cozido exige vários tachos, com cozeduras diferentes. Por um lado, todas as carnes e os enchidos duros; por outro, os enchidos moles (morcela, chouriço de sangue, farinheira) e o toucinho entremeado; por outro ainda os legumes farináceos, batata, cenoura, nabo, a que, só depois, se juntam as hortaliças. Assim, cada coisa fica com o seu sabor e não a saber tudo ao caldo único. A mistura de sabores faz-se é na boca. Quanto às carnes, tudo faseado. Primeiro o chispe, depois a vaca e o porco, a seguir o frango e os enchidos. Cada coisa tem o seu tempo próprio de cozer.

Regra seguinte. Qualquer coisa que se quer cozer só deve ser juntada à água quando ela já está ferver. A excepção que faço é a do caldo principal, em que junto logo o chispe com sal, cozendo-o até a água levantar fervura e adicionar as outras carnes. Outra regra, o tempero. Tradicionalmente, só sal e pimenta, embora no sul também se tempere com hortelã, bem como com malagueta, em S. Miguel. Mas experimentem usar só pimenta preta em vez da vulgar pimenta branca e juntar também 2 ou 3 cravinhos e 1 folha de louro. Não é canónico, mas em cozinha estamos sempre a inventar, desde que não se desvirtue a cozinha tradicional.

Finalmente, o arroz. Há regiões, principalmente no norte, em que se usa arroz de substância, levado ao forno. Gosto imenso deste arroz, para acompanhar assados rústicos, mas julgo que o assado destoa do cozido. O que uso é um arroz simplesmente cozido, mas numa mistura equilibrada dos vários caldos do cozido.

Finalmente do finalmente, há cozidos muito especiais, como o das Furnas, em S. Miguel. Já leram a minha receita de cozido das Furnas feito em casa? Abriu agora um novo restaurante açoriano em Lisboa (falarei dele depois de lá ir). Vejo que tem na ementa cozido das caldeiras das Furnas, coisa evidentemente impossível no continente, embora eu o faça. A tendência para a vaidade diz-me que terão lido o meu livro. Ou, mais provavelmente, "les bons esprits se rencontrent".

E ainda vou a outro finalmente, uma nota pessoal, porque, à açoriana, conversa puxa conversa (tenho um bom amigo terceirense que nunca me telefona por menos de meia hora, com a conta a encher). Uma coisa que gosto no cozido é o pós-cozido. Ao comer o cozido, vou deixando prpositadamente pequeninas raspas de tudo. No fim, com o prato só com uma boa garfada de arroz, lá vai essa mistura. É a sinfonia final.

E final dos finalmentes, que já começam a cansar, a sopa. Que delícia, sobre pão, bem temperada com hortelã e um pouco mais de especiarias (pimenta preta e da Jamaica), com alguma coisa retirada do cozido, batata, hortaliças, ums pequenas rodelas de enchidos, umas raspas de carnes.

Com tudo isto, pergunto-me, há um cozido á portuguesa? Não, há o cozido de cada um, desde que não lhe metam cogumelos e natas.

2 Comentários:

Anonymous Anónimo escreveu...

Cançar???
No melhor pano cai a nódoa...

25/10/06 10:51  
Blogger JVC escreveu...

Obrigado, vou corrigir. Claro que foi gralha.

25/10/06 10:58  

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