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abril 09, 2006

Peixe maltratado

Ontem ao jantar comi uma coisa de que gosto muito, um bom pargo bem fresco, assado à nossa velhíssima maneira: uns cortes, posto na assadeira rodeado de batatas aos cubos, tomate, cebola às rodelas finas, alho pisado, sal e pimenta, louro e salsa, tudo regado com bom azeite e meio copo de vinho branco. A minha mulher, que o fez, fica-se por aqui. Eu costumo acrescentar mais um toque de ervas, um pouco de malagueta açoriana e uns grãos de pimenta da Jamaica, embora nada disto seja canónico.

Como sou muito mais de carne do que de peixe, paradoxalmente ou não sou mais exigente com o peixe. Se comer um bife banal num restaurante qualquer, não me aquece nem me arrefece, fico à espera da próxima. Se comer um mau peixe, vem-me logo à cabeça que gosto menos de peixe do que de carne.

Isto fez-me lembrar os maus tratos a que está votado o nosso muito bom peixe. Não falo dos hábitos domésticos, mas na restauração. Há restaurantes de grande qualidade com excelentes pratos modernos de peixe, embora com algumas ideias estranhas, como a que aqui referi, de lombo de cherne com morcela. Mas esses restaurantes não estão ao alcance do hábito semanal da maioria das pessoas.

Nos outros, uma tristeza. Ainda vai aparecendo o peixe cozido (muito mal cozido, na nossa tradição! hei-de escrever sobre isto), mas o grelhado domina por completo. Além do mais, o PVP, que merecia atenção da DECO.

Quando fui director de um instituto, tinha muitos convidados ilustres, em regra estrangeiros, a quem tinha de oferecer almoço (já agora, era o único uso que dava ao cartão de crédito do director). Fiz um "contrato" de preços especiais com um restaurante próximo, muito na moda. Os meus convidados, sistematicamente, escolhiam peixe, mas a única oferta era de grelhados. Eu não me atrevia a dizer-lhes que as douradas e os robalos eram de piscicultura. Outros peixes eram inadequados à grelhadura: o linguado ou o peixe espada, por razões óbvias (pela sua espessura, só um génio grelhador o consegue fazer), mas também peixes secos como o cherne ou, inconcebível, espadarte e atum. Já agora, a lagosta, o lagostim e o camarão tigre, que só aceirto cozidos, questão de gosto pessoal. Para o meu preferido, o salmonete, tinha sempre de fazer encomenda especial, à setubalense, a que os meus convidados acabavam sempre por se render. Peixes fritos (ah, a garoupinha com molho de limão ou de laranja!), estufados, assados, cozidos a vapor, não os vejo nas ementas dos restaurantes comuns.

Esta nota termina com a receita de uma forma de cozinhar peixe típica das minhas ilhas, o peixe recheado. Usa-se para qualquer peixe grande dos que aqui ainda se vão usando para assar, como o pargo. Fica também excelente com uma boa garoupa açoriana, mas as que aqui chegam são mais para o pequeno. Lá, usa-se também muito a serra, da família da cavala, mas maior. Regra essencial: comprar o peixe com o fígado.
Peixe de assar, 2 dentes de alho, 1/2 copo de vinho branco, sal, pimenta branca e sumo de meio limão. Para o recheio, uma cabeça de peixe, uma cebola, vinagre ou sumo de limão, um pão grande, 4 ovos, um ramo de salsa, 1 cs de massa de malagueta, sal, pimenta e 100 g de azeitonas pretas.

Dar uns golpes ao peixe e esfregar com sal, alho picado, pimenta branca e sumo de limão. Preparar o recheio refogando ligeiramente a cebola picada miúdo e, ao começar a alourar, juntar o fígado do peixe e um gole de vinagre ou sumo de limão. Para um melhor recheio, pode-se juntar a carne desfiada da cabeça cozida de outro peixe. Juntar a este refogado uma mistura de miolo esfarelado de um pão grande, os ovos, a salsa picada, a massa de malagueta, sal e pimenta branca e as azeitonas pretas descaroçadas. Mexer muito bem e aquecer, mexendo sempre, até a mistura estar muito grossa e quase seca, com uma ligeira camada "queimada" no fundo do tacho. Rechear o “bucho” do peixe e levar a assar ao forno, com o peixe coberto com manteiga e regado com o vinho branco.
Há quem faça usando pão de milho (broa) em vez do pão de trigo. Também se pode deixar previamente o peixe de vinha de alhos. Experimente e chegue ao seu gosto particular, tão respeitável como o dos meus patrícios.

Apostila:

Há dias, fiz um jantar de família de irmãos num restaurante muito conhecido a que nunca tinha ido, o Pereira, na parte velha de Cascais. Recomendo, pela óptima cozinha. Fui provando de tudo. Um bom arroz de cabidela que encomendei (um tudo nada avinagrado em demasia, mas há quem goste), bons pezinhos de coentrada e, principalmente – encomendarei para mim da próxima vez – umas iscas inesquecíveis. Certamente marinadas anteriormente, suaves, fritas no ponto certo, molho engrossado quanto baste com raspa do fígado. Dão à escolha batata cozida, como é tradição, ou batata frita. Claro que o meu irmão, que sabe da poda, escolheu as cozidas, que melhor ligam com as iscas, mas a proprietária e "chefe de mesa" logo se lamentou de muitos clientes que vão é pelas batatas fritas. É nestas coisas pequenas que se vê o bom gosto gastronómico.

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