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julho 02, 2006

As modas que eu detesto

"O rei vai nu" é a minha assinatura dos Apontamentos, a propósito ou a despropósito, imitando o clássico "Delenda Cartago" de Catão, mesmo que fosse a terminar um discurso no senado sobre a grande cloaca. Hoje apetece-me usar esta fórmula para escrever sobre modas gastronómicas, a vários níveis, com que se compraz toda uma classe de arrivistas "gastronómicos". Deles vivem hoje os restaurantes, dos seus almoços de negócios, dos seus cartões de crédito de serviço (ai, a contenção do défice!). A ordem seguinte dos "detesto" vai a eito, à medida que me for saindo e certamente muito mais faltará dizer.

1. Detesto os livros de receitas caríssimos, inutilizáveis junto ao fogão, com mais fotografias do que receitas, sem indicações técnicas essenciais e, máximo dos máximos, exigindo esta ou aquela marca de azeite ou de vinho (até o ano!). Não há penalização para a publicidade desonesta e encapotada?

2. Detesto dois tipos extremos de ementas: aquelas em que tudo é à casa e que nos obrigam a longas conversas com o empregado, geralmente infrutíferas; e as designações quilométricas e aldrabonas, a "épater le bourgeois". Vou dar um exemplo do meu livro, tirado ao acaso: "Dourada assada com recheio de funcho". Podia ser "Dourada dos nossos mares recheada com pão rústico aleitado e limonado e assada em bom fumet com funcho a perfumar, tudo com fundo de azeite dos nossos olivais".

3. Detesto a iluminação na moda, em muitos restaurantes "finos", em que nem consigo ler a ementa, muito mais ver o prato. Não esqueçam uma coisa essencial. Um prato começa por se ver, depois cheira-se, no fim apalada-se.

4. Detesto os jantares de "buffet". Lá encontro alguma aceitação para os almoços, quando não se quer gastar muito tempo. Mesmo, assim, rapidez no serviço não obriga a "buffet", mas sim a cozinha pronta e bom serviço de mesa. Não o fazendo, os restaurantes estão a economizar no pessoal de mesa e de cozinha (pratos todos feitos antecipadamente). Mas ao jantar?!

5. Detesto o abuso de tão excelente produto nosso (e espanhol) como é o porco preto de montado. Lombinhos, plumas e secretos, parece que vão fazer diferença quando, afinal, são servidos grelhados e secos de forma a esbater qualquer diferença de qualidade das carnes.

6. Detesto o bacalhau com natas e o arroz de pato, na versão em que são servidos em todos os almoços de congressos e "workshops", mas que também não ficam atrás do que me apresentam em muitos restaurantes.

7. Detesto a dourada e robalo! Há excepções, mas na maioria dos restaurantes, são produtos infectos de piscicultura. Mas como se aviam bem!

8. Detesto a moda "executiva" do peixe grelhado ao almoço, com água do Luso, porque fica feio, a essa hora, beber nem que seja um copo de branco. Tudo a eito ao grelhador, incluindo peixes dificílimos de grelhar – e não sei se com proveito – como linguado (que crime!), peixe espada, salmonete, espadarte ou atum. Ainda hei-de ver pescada grelhada!

9. Detesto, ainda quanto ao peixe grelhado, o acompanhamento com batatas cozidas com a pele e azeite e vinagre. Ou o peixe é para cozer e tudo bem, ou é peixe óptimo para grelhar e não dispensa bons legumes e um dos muitos molhos possíveis com base em manteiga e limão.

10. Detesto o queijo servido como aperitivo ou entrada. Queijo, para quem sabe, é para comer entre o prato e a sobremesa. Mas também é verdade que o que habitualmente se serve como entrada seria inaceitável numa boa tábua de queijos.

11. Detesto espetadas. Se os produtos são de boa qualidade, há maneiras muito melhores de os cozinhar. Frequentemente, a espetada serve só para nos impingirem carne dura e lulas ou peixe congelados de má qualidade.

12. Detesto o pretensiosismo ilhéu das combinações para turista: espada com banana e morcela com ananás. Ainda estou para ver as continentais: atum com figos, à algarvia; bacalhau com ginjas, à nortenha.

13. Detesto o arroz de tamboril. Só tem de bom o fígado, mas que não chega nada, para engrossar molho, ao fígado de muitos outros peixes (especialmente o salmonete e outros de pele vermelha), infelizmente não disponível nas peixarias. Ainda sou do tempo em que o tamboril era um peixe muito barato que, pela sua consistência, nos permitia umas veleidades de imitação envergonhada de maionese de marisco, depois de cozido em sopa de camarão em cubo e alguns temperos. Era só para gozo de pelintras que gostavam de comer umas coisas diferentes, como eu. Mas pagar o "excelente" tamboril ao preço de hoje? Vão dar uma volta! Ainda me vão valendo outros peixes "ordinários" bem mais saborosos, como o cação ou a raia.

14. Detesto as variações turísticas da excelente e tradicional cataplana. Já se faz de carne, de peixe com batata, até já vi com arroz! A cataplana não é coisa turística, é um recipiente muito bem desenhado pela tradição algarvia, para uma cozinha de convecção do calor ao longo da curvatura, um pouco como o "wok" chinês. Só pode servir para cozinhar rapidamente e a lume forte ingredientes de consistência firme, como são os tradicionais, amêijoas e chouriço. Por alguma razão os legumes que fazem parte da tradicional cataplana se desfazem a fazer o molho. Experimentem lá provar peixe com batatas na cataplana!

15. Detesto, salvo honrosas excepções (sardinha assada, por exemplo) a salada de vegetais crus no prato de carne ou peixe, a diluir no azeite e vinagre o molho principal. Chapéus há muitos e legumes e vegetais também há muitos, como guarnição. Saladas são para se comer à parte, antes do prato ou depois, como é tradição em antigas casas francesas. E só com água, que não há salada que não dê cabo de um vinho.

16. Detesto o "arroz e batata frita", coisa nortenha trazida para Lisboa pelos taberneiros galegos. É certo que não há qualquer restaurante minimamente aceitável que o sirva, mas ainda reina na restauração de carácter mais popular.

17. Detesto o mau uso de um excelente peixe, o cherne. Vejo-o agora também assado "à portuguesa", em posta! Peixe assado é obrigatoriamente inteiro e há outros muito mais indicados. Para só referir os mais vulgares, pargo, goraz, cantaril grande. Na minha terra, também a bicuda e a serra, até uma cavala grande se não for muito seca.

Abro parágrafo especial para os semi-detesto, apenas porque muitos leitores provavelmente ainda não se aperceberam deles: os tártaros, os confitados, os crocantes, a massa filo, tudo o que faz hoje parte de alguma (nem toda, claro) "nova" técnica, para não falar dos carpaccios, umas vezes bons, outras vezes repetitivos e sem imaginação.

Para não terminar esta nota só com "detesto", ao menos a observação de que me parece terem passado de moda algumas coisas detestáveis (não pela qualidade, mas sim pela má confecção generalizada e por serem padrão de moda) de há uns anos: o peixe no sal e no pão, a fondue borguinhona com molhos industriais, o bife na telha (molhos idem), o doce da avó.

Já agora, prometo para a próxima uma crónica de "adoro", só dedicada à velha cozinha dos nossos restaurantes/tascas tradicionais.

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