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maio 11, 2007

Stand by

Este blogue tem estado inativo, só para leitura de escritos antigos. Entretanto, passei a escrever sobre gastronomia numa página do meu sítio, o A Inquietude Permanente, mais um portal de largo âmbito do que um blogue. Reorganizei-o e voltei a abrir blogues especializados. A este dá sequência o Gosto de bem comer. Aguardo a vossa visita.

Quando havia tempo e paciência

Dá-me gozo verificar que, na minha casa de grandes cozinheiras, avó e mãe, herança de trisavó e bisavó, até a coisa mais elementar tinha de ter alguma originalidade. Quem é que não sabe fazer um empadão, hoje à la minuta, com carne picada e puré de batata? Para as minhas velhas, tinha requinte, como nesta receita de um velho caderno manuscrito, que transcrevo, em escrita ao estilo da minha mãe (as quantidades tenho eu hoje de adivinhar ou, melhor, recordar, porque elas nunca as indicavam).

Coisa essencial na minha casa de garoto: só se fazia o empadão depois do cozido. Não ficava bem com carne a cozer de propósito. Aqui vai a receita, religiosamente copiada do livro familiar.
"Coze-se a batata com sal e mói-se. Tempera-se com manteiga, pimenta preta, um pouco de noz moscada. Mistura-se bem e com cuidado com 2 gemas de ovo, uma clara batida em castelo, leite e uma pitadinha de fermento. Fica a descansar enquanto se prepara o moído de carne.

O recheio é dos restos de cozido, moídos no moinho de carnes e humedecidos com um pouco de caldo. Todas as carnes, também um pouco de linguiça (nota, JVC: cá, chouriço) e o toucinho são primeiro refogadas em óleo ou banha, como se gostar, com cebola picada e alho esmagado muito bem, e depois moídas. Se levarem uma amostra de repolho e umas raspas muito pequeninas da morcela, também não fica mal.

Põe-se às camadas numa assadeira untada com manteiga. A última é de puré. Cobre-se com queijo ralado e vai ao forno."
Volto eu a escrever. Clara em castelo e fermento num empadão de carne, com puré que fica a descansar, já alguém leu? Devo confessar que, às vezes, aldrabo a minha avó, com a preparação final, porque não sou grande apreciador de gratinados de queijo. Em vez do queijo ralado, pincelo o empadão com uma mistura de nata, gema de ovo, sumo de limão e mostarda de Dijon. Outras vezes, apenas gema de ovo pincelada, polvilhada com tosta ralada.

Repare-se num pormenor técnico. A minha avó não diz quanto leite, mas é claro que, juntando-o a frio, só depois das gemas e da clara em castelo, não podia fazer experiências ao lume, tinha de saber muito bem qual era a quantidade. Vê-se assim que era uma óptima cozinheira.

maio 07, 2007

A fritura na cozinha açoriana

Quem quiser elaborar boas ementas de inspiração açoriana, como lá se está já a fazer, pode cumprir facilmente uma regra, a de só usar ingredientes e sabores tradicionais (ficam proibidos cogumelos, espargos, avelãs, mirtilos, produtos orientais, muita coisa mais). Em compensação, sem sequer falar da qualidade e diversidade das carnes, enchidos e peixes, que variedade. Repolho açoriano, batata doce, inhame, capuchos, caiotas, abobrinhas, mogango, funcho, malagueta, açaflor, cebola de rama, nabiça amarga, limão galego, ananás, pêro das Furnas, muito mais. É preciso não ter nenhum talento culinário para não saber inventar com isto coisas excelentes.

No entanto, há algumas dificuldades para quem queira fazer o mesmo fora dos Açores. A que parece mais óbvia, a obtenção dos ingredientes genuínos, é hoje perfeitamente superável, com amigos a porem-me as coisas no avião. Mais difícil é a adaptação aos usos de hoje de velhíssimas tradições incompatíveis (?) com uma cozinha moderna de qualidade, principalmente no que respeita à suavização do rústico. Vou dar o exemplo dos fritos.

O azeite, nos Açores, era produto caro vindo do reino, era só para temperar a salada ou o peixe cozido. Em contrapartida, o uso do óleo vegetal, para fritura, é secular e há memória antiga de prensagem local de amendoim, trazido da Guiné na volta do largo, juntamente com a malagueta do Benim. No falar pitoresco das minhas gentes, comprava-se óleo de mendobi. Este óleo era a base de todas as frituras, mesmo dos refogados e guisados, com excepção dos casos que discuto a seguir, da banha e da manteiga.

Ia começar por escrever que estas duas eram as gorduras para as carnes. Nem isto é verdade. A clássica carne "assada" (de facto estufada, na panela) ou o lombo de porco do mesmo tipo são em óleo. Banha tem relevo em tudo o que sejam preparações mais rústicas de porco, a culminar nos inexcedíveis torresmos de molho de fígado (comprem o meu livro!). É coisa elementar no meu jantar sempre extra, de regresso de S. Miguel, de morcela, linguiça, ovo estrelado e batata frita. Tudo na mesma banha, misturada da fritura, até ao ovo estrelado.

A seguir, a manteiga. É, nos Açores, a gordura de excelência para fritos de qualidade, com toda a técnica ancestral de bem controlar a temperatura para não a deixar queimar. Por isto, como disse, para carnes de confecção longa, usa-se óleo. A manteiga é para bifes e similares. Também para tudo o que não chega à temperatura de fritar, como untar tabuleiros ou formas, temperar purés, suavizar molhos, sei lá que mais.

No fim, uma nota sobre este uso estranho de gorduras. A massa quebrada das empadas da minha família era considerada uma especialidade. Além de manteiga, inclui banha!

maio 02, 2007

O chefe tem sempre razão?


Não há chefe que não escreva receitas para os jornais de referência. É natural que a imaginação se vá esgotando, mas há limites. Quem não se sente, não é filho de boa gente. Quem não dá o seu nome a respeitar não sabe o que é honra do nome. Na Pública de 29 de Abril Miguel Castro e Silva publica uma receita de bacalhau à Brás.
Bacalhau às postas, leite, cebola, azeite, batata frita palha, ovos, salsa picada, sal.
Escalde o bacalhau previamente demolhado em água a ferver. Retire do lume e deixe repousar uns minutos e lasque. Coloque o bacalhau em leite. Corte a cebola em gomos e abafe num pouco de azeite até ficar translúcida. Junte a batata e o bacalhau com o leite. Bata os ovos e envolva com os restantes ingredientes. Rectifique de sal. Finalize com um pouco de salsa.
A revista intitula isto de "Miguel Castro e Silva interpreta receitas da cozinha tradicional". Não percebi. A única diferença em relação ao que fazem milhões de cozinheiros portugueses é o escaldar do bacalhau e o embeber em leite (também, é certo, o incluir algum leite na preparação final). Mas isto de escaldar e embeber é alguma novidade? Quantas vezes já escrevi que isto é a técnica elementar de preparar bacalhau, nada de génio de chefe, apenas apuramento de técnica ao longo de muitos anos de prática e de leitura? E lá estou eu sempre a falar na técnica!

Ah, mas reparo agora numa coisa essencial. Mais uma vez, o empratamento em cilindro alto na vertical. Deve ser isto que faz a grande diferença deste bacalhau à Brás... Há alguém que consiga comer uma garfada cortada de alto a baixo nos empratamentos na vertical? Sugiro-vos um jogo. Vão a um restaurante da moda, com empratamentos na vertical e vejam quanta gente, com ar de bom apreciador (eu incluído!), a primeira coisa que faz é espalhar aquilo a encher o prato. Ou um prato fez-se para nos ser servido com mais de metade da área de porcelana em seco?

Nota - É claro que dizer que faço sempre assim o bacalhau não quer dizer que o inventei. Aprendi há muitos anos, se calhar com uma das mais velhas descrições desta técnica, a da receita original de Gomes de Sá.